Actualidad

Tessitura da pesquisa operacional participativa em hanseníase: caminhos e pontes para o desenvolvimento inclusivo no Brasil

Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário

Paulo Freire

 

Este ensaio tem como base de fundamentação a apresentação realizada pela equipe brasileira durante o “XXI Colóquio Internacional de 17, Instituto de Estudios Críticos: In Suma, la Lepra, na Cidade do México, México, em julho de 2016. O objetivo central foi trazer reflexões sobre cenários e contextos da expressão da hanseníase no Brasil. Para tanto, tomamos como referência diálogos e percursos construídos ao longo de 15 anos de atuação interdisciplinar com o foco em pesquisas operacionais em saúde e sobre o seu potencial como movimento que oportuniza ações de desenvolvimento inclusivo no país.

A equipe brasileira foi composta por pesquisadores do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, localizada no município de Fortaleza, Estado do Ceará, região Nordeste do Brasil. Ao longo deste período, além das significativas redes nacionais estabelecidas com instituições (governamentais e não governamentais), movimentos sociais, profissionais de saúde, gestores e sociedade em geral, em especial nas regiões mais pobres do país (Nordeste, Norte e Centro-Oeste), ressalta-se a significativa parceria com a organização internacional Netherlands Leprosy Relief (NLR), representada em nosso país pela Netherlands Hanseniasis Relief (NHR).

Estas parcerias foram e têm sido fundamentais para que, após sucessivas experiências de dentro e fora do país, o grupo compusesse uma proposta integrativa de atuação, a partir do referencial da pesquisa operacional em hanseníase, conhecido como IntegraHans.

Esta proposta faz referência à integralidade da atenção e do cuidado em saúde, essenciais para a abordagem de questões relacionadas aos processos multifacetados de saúde-doença, envolvendo necessariamente, a integração entre diferentes setores. O IntegraHans traduz a expressão de novas estratégias para integrar ações de promoção da saúde, de prevenção, de tratamento, de cura e de reabilitação física e psicossocial de pessoas acometidas pela hanseníase. Busca ampliar o debate sobre a importância de se compor uma rede integrada, resolutiva e equitativa com serviços de saúde de diferentes complexidades tecnológicas com vistas ao alcance das reais necessidades das pessoas.

Para além do setor saúde, propõe um “olhar” integral para todos os aspectos da vida do indivíduo/família e não apenas aqueles relacionados à doença. Da mesma forma, reitera que o “cuidado” a partir de uma equipe multiprofissional deva incluir ativamente o empoderamento de núcleos familiares em sua comunidade.

Integralidade, equidade e universalidade do cuidado são princípios fundamentais do Sistema único de Saúde (SUS) do Brasil. No entanto, o modelo assistencial em grande parte ainda se baseia, no plano real, em uma lógica restrita a aspectos físicos do adoecimento, de forma fragmentada. Falhas de saúde pública sustentam a hanseníase como um problema grave no país. De fato, a desigualdade de acesso aos serviços de saúde e a baixa qualidade das ações desenvolvidas criam um cenário favorável para manutenção da elevada carga da doença, principalmente entre as pessoas mais pobres. As pesquisas operacionais emergem como estratégia relevante para a busca de soluções dos problemas identificados nos territórios endêmicos.

Assim, o presente texto “Tessitura da pesquisa operacional participativa em hanseníase: caminhos e pontes para o desenvolvimento inclusivo no Brasil” busca alcançar estas perspectivas visando contribuir para olhares mais ampliados sobre a hanseníase. A dimensão histórica desta endemia em nosso país reforça a responsabilidade em gerar experiências bem-sucedidas e evidências para a hanseníase e outras condições envoltas por estigma, preconceito e exclusão.

 

 

Hanseníase como expressão de uma sociedade desigual e injusta

 

O Brasil apresentou avanços econômicos e sociais importantes na última década, configurando-se como um país com grande potencial para liderar debates críticos sobre problemas prevalentes em países menos desenvolvidos. Diversas políticas inovadoras e de caráter social geraram a inclusão de milhões de brasileiros e brasileiras e, por exemplo, a retirada do Brasil do mapa mundial da fome.

A despeito destes avanços, ainda não foi possível assegurar à nossa sociedade uma redução sustentável das graves desigualdades em que vivemos. A concentração de riqueza e de poder junto às elites brasileiras persiste e tem sido ampliada pelo agressivo avanço do ideário neoliberal no país e em toda a América Latina. Direitos sociais e humanos ainda têm sua garantia fragilizada diante dos tensionamentos oriundos do setor financeiro nacional e global. Medidas restritivas a políticas sociais sofrem cotidianamente “fortes mudanças mantenedoras” e desdobram-se na ampliação das diferentes dimensões de vulnerabilidades e desigualdades sociais. Este cenário é francamente favorável a processos de adoecimento muito relacionados à baixa condição de vida.

Acometendo núcleos familiares, principalmente em áreas periféricas das grandes cidades e/ou no interior dos estados, em lugarejos distantes dos grandes centros urbanos, o enfrentamento à endemia, perpassa por medidas gerais de promoção a saúde, de prevenção e controle da doença. Assim, estratégias que permitam uma abordagem integral ao indivíduo e a comunidade devem ser priorizadas em meio a tamanha complexidade.

A hanseníase compõe um grupo de doenças negligenciadas, causadas pela pobreza e perpetuadoras desta condição de vulnerabilidade social. Enxergar esse problema como persistente no século XXI nos remete a uma reflexão sobre efetividade de políticas públicas, em cenários de negligência e desigualdade social. Embora milenar, apresenta-se de forma desigual, sobretudo nas regiões mais pobres do país onde persistem elevados coeficientes de detecção de casos novos, inclusive em crianças menores de quinze anos de idade.

O Brasil persiste como o segundo país a gerar novos casos de hanseníase detectados ano após ano. São aproximadamente 30.000 casos por ano que se somam aos casos existentes, diagnosticados no passado e já tratados, mas que ainda demandam atenção e cuidado. Uma breve análise dos dados históricos dos últimos 30 anos revela um número aproximado de mais de 1 milhão de pessoas atingidas pela doença. De fato, como condição crônica, a hanseníase associa-se a adoecimentos, incapacidades, estigma, sofrimento e pobreza.

Os avanços observados nas ações de controle, sobretudo com a ampliação do papel da rede de atenção primária à saúde no país a partir de 2001, associou-se ao ciclo de transformações sociais em um período de 10 anos (2004-2014). Estas transformações foram traduzidas pela melhoria de alguns dos determinantes sociais da doença. Destaca-se a renda familiar crescente, com diminuição da desigualdade e redução da extrema pobreza, em parte pelo amplo programa de transferência de renda e pelo aumento da atividade econômica. Os indicadores educacionais também acompanharam essas mudanças, com ampliação da escolaridade dos jovens brasileiros, mas permanecendo o desafio de ampliar o acesso a gerações de maior idade. A despeito destas transformações e diante das transições demográfica e epidemiológica, a hanseníase consolida-se como uma urgência “atrasada” o seu controle de forma a transformar realidades.

Além dos casos de hanseníase pós-disponibilização da poliquimioterapia, é importante recordar que o Brasil já teve instituída, por décadas, política de internação compulsória e institucionalização das pessoas acometidas pela hanseníase que não tiveram a oportunidade de um tratamento eficaz e efetivo. Esta população foi colocada ao longo de sua vida em contexto de extrema vulnerabilidade social. O cuidado a essas pessoas e seus familiares em particular deve ser pautado pelo sentimento de busca de sua completa inclusão social com plenos direitos sociais e humanos. Existe, assim, uma urgência em romper com o paradigma do estigma que acompanha esta doença em tempos passados e atuais, bem como em fortalecimento do empoderamento tanto do ponto de vista individual e familiar quanto dos profissionais da saúde envolvidos com a atenção.

No plano institucional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) discute a necessidade de se construir Serviços de Saúde Fortes e Resilientes, que atuem na redução de riscos e que forneçam respostas consistentes e contundentes à população em um SUS universal, acessível, transparente, democrático e responsivo.

Compreendemos o SUS em seus 32 anos de existência como um patrimônio do povo brasileiro, que alcançou grandes avanços, mas que esbarra em entraves de financiamento, gestão e planejamento para a sua efetivação. Traduz-se ao longo deste período por uma luta contínua que vem pautada na força de trabalho, na gestão financeira, na administração, na acessibilidade, dentre outros aspectos. As diversas mudanças pelas quais o país passa no atual momento gera um sentimento de eterna construção ou recomeço, de militância dentro da reforma sanitária que tem sido construída desde os anos 1970.

O Brasil tem hoje o compromisso de atuar no controle da hanseníase bem como elaborar, implantar e efetivar políticas públicas inovadoras que assistam e contemplem a inclusão social. Ressalta-se que este aspecto se remete para além das pessoas acometidas com hanseníase, necessitando olhares ampliados e integrados.

É necessário criar caminhos que criem oportunidades de se relacionar com os diversos atores nas comunidades, favorecendo ações intersetoriais. Estratégias, como a gestão da clínica e do cuidado, centradas nas necessidades da pessoa com hanseníase reforçam o maior diálogo com os tomadores de condutas e/ou de gestão. Identificar problemas na atenção e no cuidado a estas pessoas com vistas à busca de soluções ampliadas e custo-efetivas torna-se fundamental, sobretudo com a participação das pessoas com hanseníase e suas famílias/comunidades.

 

 

Caminhos e História: Proposta IntegraHans

 

Considerando toda a complexidade da história de vida de cada pessoa, inclusive aquelas relacionadas ao processo saúde-doença, torna-se central inserir o debate sobre o cuidado ao ser humano ou a um coletivo bem como sobre o reconhecimento das necessidades reais pela rede de atenção à saúde.

O SUS disponibiliza meios diagnósticos e tratamentos de forma gratuita em centros de referência (localizados em cidades de médio e de grande porte) e em unidades de atenção primária à saúde, denominadas no Brasil de unidades básicas de saúde. No entanto, por questões relacionadas à desigualdade de acesso e à lógica de atenção e cuidado instituída, as ações não estão sendo efetivas para a mudança na dinâmica de transmissão da doença em várias áreas. Desta forma, reafirma-se a necessidade de estratégias integradas a serem desenvolvidas no território vivo, onde a hanseníase “sobrevive” em pleno século XXI.

A realização de pesquisas operacionais em saúde que investiguem de forma integrada aspectos epidemiológicos, clínicos e sociais relacionais tem sido uma estratégia significativa no país. Questões operacionais relacionadas às falhas dos serviços de saúde e à sua não integração com outras áreas, a exemplo da educação, proteção social etc., tornaram-se foco de análise. Foi este o caminho definido pela equipe de pesquisadores da UFC ao escolher o método de pesquisas operacionais como meio para apoiar intervenções consistentes e participativas dentro da realidade social singular de cada local.

A pesquisa operacional utiliza principalmente de métodos da epidemiologia, da gestão e planejamento, bem como das ciências sociais e humanas para buscar evidências baseadas empiricamente e validadas cientificamente, sobre os problemas relacionados ao baixo desempenho dos serviços de saúde, assim como sobre as estratégias para resolvê-los. A qualificação das ações para o controle da hanseníase, propostas pelo IntegraHans constitui objetivo comum a um grupo de atores, incluindo necessariamente as pessoas atingidas e o movimento social.

No âmbito da hanseníase, considerando o modelo de pesquisa operacional do IntegraHans, isso se traduz na investigação de novas estratégias para integrar ações de promoção da saúde e controle da doença em diferentes pontos da rede de atenção. Da mesma forma, reforça ainda que o “cuidado” seja realizado por uma equipe multiprofissional, direcionada para o empoderamento do núcleo familiar em sua comunidade.

Busca-se em cada projeto desenvolvido, articular gestores dos serviços públicos, com universidades locais, movimento social, espaços não institucionais, a exemplo de igrejas e associações, em uma perspectiva de induzir envolvimento comunitário e institucional, essenciais para a sustentabilidade das intervenções propostas.

As experiências mais recentes ocorreram nos estados de Rondônia (municípios de Cacoal e Rolim de Moura) e Bahia (municípios de Vitória da Conquista e Tremedal), a partir de uma proposta financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este projeto denominou-se: “Atenção à saúde para hanseníase em áreas de alta endemicidade nos Estados de Rondônia, Tocantins e Bahia: abordagem integrada de aspectos operacionais, epidemiológicos (espaço-temporais), clínicos e psicossociais (IntegraHans Norte e Nordeste).

Partindo da identificação de parceiros locais, compõe-se a equipe de trabalho que deverá incluir, prioritariamente, profissionais e gestores da rede de atenção à saúde de diferentes pontos de atenção, pesquisadores e estudantes de universidades locais, movimento social e pessoas atingidas pela doença. Inicia-se assim um processo de problematização sobre a realidade local, adequando aos objetivos do IntegraHans assim como definindo os processos relacionados à pesquisa de campo. Este espaço reflexivo e crítico é mantido em todas as etapas, resignificando as práticas e o modo de compreender a realidade local.

Considerando que o Ministério da Saúde do Brasil, possui o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, tem-se acesso a essa base de dados de hanseníase. Desse modo, todas as pessoas acometidas pela doença e notificadas a partir de 2001 foram identificadas e vinculadas a uma área de cobertura da atenção básica.

Este movimento de territorialização dos casos existentes, permite o convite ao núcleo familiar para participar de uma abordagem que inclui intervenções relacionadas à educação em saúde, aspectos clínicos, epidemiológicos, limitação funcional e de atividades, saúde nutricional, saúde bucal, qualidade de vida e questões relacionadas à restrição à participação social.

Para operacionalizar mudanças na lógica de organização atual das ações de controle da hanseníase, centralizado em serviços especializados e de acesso restrito, a proposta IntegraHans busca integrar ao máximo os profissionais que compõem as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), principalmente os agentes comunitários de saúde (ACS) e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), este último responsável pelo matriciamento das referidas equipes. A partir dessa cooperação e de ações articuladas são estabelecidos espaços de educação permanente em serviço, visando reconhecer e analisar o processo de trabalho a ser instituído nestas unidades, no domicílio e na comunidade com vista à integralidade e longitudinalidade do cuidado.

Com foco nos ACS, desenvolveram-se os procedimentos metodológicos em oficinas de trabalho durante as quais, a partir de uma abordagem problematizadora, são discutidos sentimentos e percepções relacionadas ao estigma e a questões individuais. Ao longo deste processo, foram identificadas situações em que os ACS apresentavam atitudes de discriminação de familiares, comunidades e instituições vinculados à hanseníase. Estes encontros também se constituíram em espaços para fortalecimento dos princípios éticos e de respeito aos direitos humanos, necessários à abordagem das pessoas, de forma particular, mas também em seu contexto familiar e de redes sociais.

Essa ênfase nos ACS, justifica-se diante do reconhecimento de que eles se constituem no Brasil como verdadeiras “pontes” entre a comunidade, movimentos sociais e o sistema de saúde. Além disso, a sua prática profissional diária fundamenta-se no cuidado longitudinal de pessoas e famílias, a partir de ações integrativas.

O primeiro contato dos ACS com as pessoas acometidas pela hanseníase ocorre no seu domicilio, o que torna este espaço como prioritário para ações de atenção e cuidado, mas também do processo de pesquisa do IntegraHans. Trata-se do espaço com maior probabilidade de transmissão da doença, lócus onde se expressam as relações familiares e de redes sociais, e que deve ser reconhecido como ambiente essencial para compreensão da dinâmica dos processos saúde-doença.

Nesta perspectiva, foram abordados inicialmente os casos referência (primeira pessoa na família com hanseníase detectada), e havendo sua permissão formal, a abordagem incluiria os contatos intradomiciliares (pessoas que viveram ou vivem com o caso referência até cinco anos antes do início do tratamento), coabitantes residentes (pessoas que passaram a viver com o caso referência após este ter concluído a poliquimioterapia) e coabitante social (pessoas que conviveram ou convivem com o caso referência no ambiente familiar, sem no entanto, morar na casa). A Figura 1 é uma representação gráfica do que denominamos de núcleo familiar abordado pelo projeto IntegraHans.

 

Figura 1- Tipologias dos sujeitos de pesquisa envolvidos pelo projeto IntegraHans.

 

O fato de a hanseníase no Brasil ainda ser uma doença altamente negligenciada e estigmatizante, torna a abordagem domiciliar ainda mais complexa, considerando inclusive a diversidade de contextos e situações vivenciadas em um determinado território. Um bom exemplo é o fato de que em muitas comunidades o diagnóstico da hanseníase ser de total desconhecimento dos próprios familiares (cônjuge, filhos etc.), dos profissionais da ESF, e inclusive dos ACS. Por essa razão, o contexto exige uma abordagem bastante respeitosa, sensível e qualificada.

A partir destes desafios foram definidas diretrizes para nortear este processo com o intuito de favorecer uma relação de confiança, segurança e sigilo, estreitando vínculos, promovendo educação em saúde, empoderamento e autocuidado.

As oficinas foram conduzidas também com o objetivo de sistematizar diferentes momentos com elaboração do roteiro de forma participativa entre aqueles que atuavam no território: 1) Identificação do caso referência de hanseníase no SINAN – Agendamento da visita domiciliar; 2) Confirmação da identificação do caso-referência e apresentação dos responsáveis pela abordagem domiciliar; 3) Informações referentes à garantia da privacidade e sigilo; 4) Esclarecimento sobre objetivos do projeto; 5) Abordagem temática da doença como espaço de educação em saúde; 6) Convite para participação no projeto de pesquisa; 7) Verificação de aceitação ou recusa, indicando as motivações; 8) Abertura para a possibilidade de abordagem na unidade de saúde ou no ambiente do domicílio; 9) Explicação sobre os conceitos de contato, coabitantes social e residente 10) Convite para contatos e coabitantes, após autorização pelo caso referência por meio do termo de consentimento para essa abordagem; 11) Abertura para que o convite a contatos e coabitantes fossem feitos pelos pesquisadores e/ou casos referência; 12) Avaliação sobre permissão do acompanhamento por ACS e/ou da equipe de saúde da família no seu cuidado.

Esta etapa do projeto, reafirmou o “medo” de muitas pessoas em relação à possibilidade da revelação do diagnóstico a familiares e vizinhos. Foram registradas falas como: “ninguém da minha família sabe”; “… eu tenho um comércio (refere a estabelecimento comerciário), não vou participar do projeto porque as pessoas vão saber que tenho esta doença”; “… minha sogra não sabe, e caso ela pergunte, inventem uma desculpa para esta visita”.

Reafirma-se, portanto, a necessidade da adoção de posturas que transmitam confiança e responsabilidade com a vida das pessoas, guiada inclusive por protocolos éticos de abordagem singulares. A grande questão que se apresenta é que a abordagem pelas equipes de saúde definidas pelos programas de controle não trata dos meios para se alcançar esta abordagem mais qualificada.

Ao final de todos os movimentos gerados pelo IntegraHans, 846 casos de hanseníase, 1.198 contatos intradomiciliares, 456 coabitantes sociais e 207 coabitantes residentes foram abordados por uma equipe multiprofissional. Todas as etapas envolveram discussão que incluiu  os diferentes atores envolvidos bem como ações de educação permanente.

À exceção dos casos de hanseníase, todos os demais sujeitos tiveram o exame dermatológico e neurológico realizados para triagem, sendo identificados 34 novos casos (35,3% entre coabitantes sociais ou residentes, 70% com classificação clínica multibacilar e 22,5% em menores de 15 anos). A abordagem das pessoas com diagnóstico prévio de hanseníase compreendeu avaliações clínicas, incluindo o grau de incapacidade física, saúde nutricional e bucal. Além da aplicação de questionário e/ou escalas sobre as condições socioeconômicas e redes sociais, foi possível reconhecer aspectos relacionados à limitação de atividades da vida diária, qualidade de vida e restrição à participação social.

Salienta-se o caráter interdisciplinar da equipe de pesquisa, que envolveu diversos profissionais de saúde (enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, médicos, nutricionistas, dentistas e psicólogos), além de estudantes de graduação de cursos na área da saúde e representantes do movimento social. Esse formato tornou possível um olhar amplo e uma análise compartilhada das diferentes necessidades dos núcleos familiares incluídos na pesquisa, no sentido de buscar estratégias para o enfrentamento de questões, a exemplo da reabilitação psicossocial. Fortalece em todos a necessidade de pensar modelos de atenção integral de desenvolvimento inclusivo que sejam promotores de colaboração multi e intersetorial, inclusão, empoderamento e sustentabilidade.

Após conclusão das atividades de campo e composição dos bancos de dados, durante a oficina de análise de dados, promoveu-se a construção de evidências impulsionadoras para mudança da realidade. Todos os resultados são analisados e posteriormente apresentados a diferentes atores sociais durante o seminário IntegraHans, socializando para gestores, universidades, profissionais, usuários, movimento social, conselhos de saúde, etc., os principais resultados e as recomendações para possíveis estratégias de mudança da realidade local.

Com base nas recomendações, realizou-se momento específico para construção de agenda integrada onde gestores, pesquisadores, movimento social, sociedade civil, empresários e usuários discutem e pactuam estratégias a nível local e estadual.

Desta forma, todo o processo da pesquisa desenvolve-se em um ciclo de ações que visa mudanças objetivas por meio do empoderamento da comunidade, das pessoas acometidas pela hanseníase e dos profissionais que fazem parte do sistema de saúde. A busca para fortalecer o empoderamento nas comunidades apresenta grande possibilidade de criar novos processos locais com características de uma sociedade inclusiva. Assim essa metodologia de pesquisa ora apresentada, além de atuar como divisor de águas para ações inovadoras de vigilância à saúde, poderá representar uma estratégia para fortalecer a inclusão social. Trata-se de um modelo gerador de mudanças nos diversos cenários de desigualdade social, abrindo oportunidades para uma vida mais feliz.

 

 

Perspectiva psicossocial da Pesquisa Operacional

 

O princípio da integralidade, contemplado na construção ideológica e doutrinária do SUS, preconiza que não somente cada pessoa seja considerada em toda a sua completude, mas que também os serviços de saúde operem de modo indivisível e complementar, de modo que toda e qualquer necessidade de prevenção, assistência e tratamento estejam garantidas, ao se trabalhar alicerçados nesse princípio. Assim, naturalmente, apenas abordar elementos restritos à questão física, biológica, vinculados à hanseníase seria negar a dimensão da integralidade do cuidado. O IntegraHans,  desde experiências anteriores, trouxe essa perspectiva psicossocial à tona, apontando a necessidade de abordagem, conhecimento e reflexão sobre aspectos da vida das pessoas atingidas pela hanseníase.

Quando nos referimos à perspectiva psicossocial estamos falando não apenas sobre o contexto social dessas pessoas, mas também sobre aspectos de ordem individual, não necessariamente associados ao processo saúde-doença.

O impacto que a hanseníase promove vai muito além do adoecimento físico, das lesões de pele, dos episódios reacionais e das incapacidades e deformidades instaladas. É historicamente reconhecido que a hanseníase aponta para questões sociais e emocionais e excluir esses elementos é caminhar na contramão da possibilidade de um olhar integral.

As falas a seguir traduzem estas questões no âmbito de rede social e familiar:

“Eu cheguei com o resultado exame, disse pra ele que eu tava com hanseníase, ele tava sentado do meu lado […] se afastou de mim e ficou do outro lado em pé e aí ele me perguntou: ‘Você sabia que essa doença ela é transmissível? Você sabia que ela passa?’ Eu disse, isso não precisa nem o senhor falar, antes do senhor falar isso eu já sei a resposta. Ele disse assim: ‘Então você pode infeccionar qualquer pessoa.’ Eu falei assim não, não é assim como o senhor pensa que é, o senhor tá totalmente desinformado daquilo que é a doença. Ele disse assim: ‘Não. Você vai ficar de férias senão você vai transmitir pros seus colegas de trabalho.’ E ele proibiu dos meus colegas me visitarem. Então eu me senti muito ofendido com isso”.

Trata-se, pois, de uma doença negligenciada, em contextos negligenciados, que atinge pessoas em situações de vulnerabilidade e que, por tudo isso, dificilmente exercem seus papéis sociais em toda sua plenitude.

“[…] porque é mãe ‘né’? É sangue ‘né”’? Aí dói, e como dói. Eu chorava pra aquela ali […]  minha mãe não vai na minha casa. Ela disse […] ‘filha é assim mesmo, com o tempo ela vai entender’. Então, são momentos que passam na vida da gente que a gente faz o possível e o impossível pra superar ‘né’”.

Algumas dimensões investigadas nesse projeto tinham também como objetivo explicitar aos serviços de saúde, a partir de evidências, a necessidade de que reconheçam e abordem, à luz dos princípios do SUS, na perspectiva da promoção da saúde, questões como a vulnerabilidade, a participação social, o estigma e a qualidade de vida. A expressão da fala abaixo traz à tona a complexidade da construção da relação profissional de saúde / serviço de saúde com a pessoa com hanseníase:

“Nesse momento que ela me disse assim: ‘tua vida vai mudar. Larga tua namorada, briga com ela, pega um talher, pega um prato, separe’”

Todas essas questões dialogam entre si. Uma pessoa acometida pela hanseníase tem uma trajetória nesse processo relacional com a doença que necessariamente irá afetar a sua vida pessoal, social e laborativa. A qualidade de vida, compreendida como uma relação entre as diferentes áreas da vida é compreendida pela OMS como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”.

O seguimento durante e após o tratamento tem o potencial de propiciar suporte ao impacto provocado pela doença, minimizando as chances da redução da qualidade de vida, seja a curto, médio ou longo prazo, afinal, a conclusão da poliquimioterapia não encerra por completo a história da pessoa com a doença e a necessidade de continuidade do seu cuidado. O uso de ferramentas de aproximação, a exemplo de escalas tais como a WHOQOL e Índice Dermatológico de Qualidade de Vida (DLQI) podem ser aliadas no monitoramento das pessoas com hanseníase longitudinalmente, se os serviços reconhecem e se apropriam desse cuidado ampliado.

Pela história de estigma construída e relacionada à hanseníase, e ainda mantida em muitos espaços, pelas incapacidades físicas decorrentes da doença, as pessoas têm suas interações pessoais e sociais diretamente afetadas. A dimensão de participação social, que considera as diversas áreas da vida (trabalho, pessoal, cívica, educacional, interpessoais), pode ser, em maior ou menor grau, modificada pelo processo da doença, provocando uma restrição à participação social, interferindo, portanto, no curso normal da vida dessas pessoas.

Esse resultado de restrição pode ser identificado e cuidadosamente observado a partir da utilização da Escala de Participação, ferramenta disponível, que é recomendada pelo Ministério da Saúde do Brasil como auxiliar no processo de abordagem terapêutica das pessoas acometidas pela hanseníase. É uma das possibilidades de aproximação das necessidades de reabilitação psicossocial.

Não reconhecer a possibilidade dessas “respostas” na vida das pessoas é definitivamente negligenciar as dimensões da hanseníase e restringi-la ao elemento biológico e físico, como se fosse possível dissociar o ser humano, compartimentá-lo. Somos indissociáveis e elementos pessoais, emocionais, interpessoais, subjetivos são diretamente impactados.

Os serviços de saúde têm possibilidades de acessar uma série de ferramentas, instrumentos, técnicas e teorias que sustentam a importância de promover a assistência integral, mas esta não se faz sozinha, quando se está imerso nas rotinas do modelo exclusivamente biomédico e limitado que são reproduzidos pelo país. É justamente na rotina do serviço que se torna propício o olhar integralizado à pessoa que se coloca à sua frente.

É nesse momento que o vínculo deve se estabelecer, que a confiança entre esses sujeitos se afirma. É no seguimento que se conhece em um processo de escuta qualificada como a pessoa está vivenciando o processo de adoecimento e de que maneira a sua vida foi afetada, justamente nos aspectos outros, individuais e sociais, para além do corpo físico. Há de se fazer diferente, há de se fazer a diferença para mitigar os danos provocados pela discriminação, estigma e preconceito.

 

 

Desenvolvimento Inclusivo e Reabilitação Baseada em Comunidades: um exemplo a ser relatado

 

História como a de M.P.O, ficaram na lembrança de muitos de nós. Talvez devêssemos relatar aqui, mas as poucas linhas dessa tessitura nos impedem. No entanto, gostaríamos de contar alguns detalhes da vida deste jovem rapaz de 36 anos. Trabalhador braçal, de raça parda, com baixa escolaridade e morador em um dos bairros mais populosos e carentes de uma cidade do interior da Bahia, região Nordeste do Brasil. Após a separação passou a morar com sua mãe e levou consigo seus dois filhos, uma menina de oito anos e seu irmão ainda em tenra idade. Ambos cuidados por sua avó paterna, a qual teve diagnóstico de hanseníase há muito tempo atrás, assim como seus pais. Neste contexto, o jovem M.P.O, tem também o seu diagnóstico confirmado. Infelizmente, de forma bastante tardia. Com lesões em garras acentuadas em ambas as mãos, perde força e sensibilidade, tornando-o inapto, considerando a natureza física do seu trabalho. Em consequência, as dificuldades econômicas ampliam-se, principalmente quando passa a ser dependente de bebida alcoólica. Assim, o contexto de pobreza geradora da hanseníase, amplia-se atingindo outras gerações (seus filhos), mantendo um ciclo vicioso de vulnerabilidades e desigualdades sociais.

Romper com este ciclo torna-se condição para eliminar a hanseníase. Reabilitar pessoas de forma a promover inclusão social passa a ser prioritário.

A atual estratégia Global para Hanseníase 2016-2020 apresenta como um dos seus pilares o combate à discriminação e promoção da inclusão abordando, entre outros elementos, a necessidade de apoiar a reabilitação na comunidade para pessoas com incapacidade relacionada à hanseníase. Assim, abre-se espaço para intensificação das discussões acerca da estratégia de Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC), introduzida pela Organização Mundial de Saúde, enquanto importante ferramenta para o desenvolvimento inclusivo.

Ao pensar em modelos de desenvolvimento inclusivo, faz-se necessário compreender a realidade local, a fim de que sejam identificadas as principais necessidades sentidas, possibilitando o desenvolvimento de ações integradas, que contribuam essencialmente para a conquista de igualdade de oportunidades e direitos das pessoas acometidas pela hanseníase.

Por ser a incapacidade um fenômeno extremamente complexo, todos os modelos de cuidado existentes devem ser considerados (biomédico, religioso/moral, caritativo, social, de direitos humanos, etc.), uma vez que apresentam ângulos importantes. No entanto, a soberania do modelo biomédico, voltado apenas para a reabilitação física se mostra incapaz de se constituir em uma experiência multidimensional e dinâmica relacionada ao adoecimento que alcance fatores os sociais e contextuais.

Dessa forma, a matriz de RBC não se constitui em ações rígidas e verticalizadas, pois os princípios que conferem legitimidade a esse modelo são implementados por meio dos esforços conjuntos de diversos atores sociais – pessoas com deficiência/incapacidade, suas famílias, comunidades, serviços (saúde, educação, cultura, social), profissionais, setores governamentais e não-governamentais, movimentos sociais.

Assim, uma proposta de RBC não se caracteriza pelos tipos de atendimentos prestados (saúde, educação e outros), mas sim como são articulados a fim de desenvolver essa estratégia. Portanto, traz em sua essência a inclusão (participação social), empoderamento, sustentabilidade e colaboração multisetorial, estimulando o protagonismo das pessoas com incapacidade. Este é um possível caminho para rompimento dos contextos de vulnerabilidade e construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Por fim, assim como abrimos este texto, relembramos Paulo Freire, como sentimentos para tudo o que foi exposto: “A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão.”

 

 

Eliana Amorim de Souza, Alberto Novaes Ramos Jr., Jaqueline Caracas Barbosa,

Maria Solange Araújo Paiva Pinto, Thayse Andrade Fernandes, Héllen Xavier Oliveira