No Rio de Janeiro, 22% da população mora em favelas. Isso significa quase 2 milhões de pessoas vivendo nesses territórios populares. Favelas como o Morro do Alemão, Rocinha, Maré e Jacarezinho, possuem alta densidade demográfica, são maiores do que cidades de médio porte no Brasil. O que todas essas favelas têm em comum é que, em grande parte delas, as casas foram construídas por seus moradores. Há também conjuntos habitacionais – caso da Maré – construídos pelo Estado. Mas mesmo nesses casos o que se encontra é uma concentração de um bom número de pessoas vivendo sob o mesmo teto.
Isso significa que além de comunidades adensadas, as habitações acolhem um bom número de pessoas. Por isso, a chegada da pandemia de Coronavírus assusta os moradores das favelas no Rio de Janeiro.
Porém, o problema não diz respeito apenas à alta densidade populacional das favelas, essa explicação seria injusta e incompleta. Na verdade, o problema é bem mais profundo. Tem a ver com as condições gerais de vida nesses espaços populares, como, por exemplo, a falta de acesso aos direitos básicos, como a saúde, água, transporte, segurança, renda e a atenção do Estado para com os moradores desses territórios.
O fato é que, historicamente, as favelas no Rio de Janeiro sempre foram consideradas como espaços não pertencentes à cidade. Apesar de comporem a “paisagem” do Rio de Janeiro há mais de cem anos e de contribuir economicamente e culturalmente para criar a “alma” carioca, esses espaços sempre foram tratados de maneira subalterna pelas classes mais abastadas e pelos governantes.
Tal estado das coisas pode ser comprovado quando observamos o próprio desenvolvimento da cidade. Desde o surgimento da primeira favela, ainda no final do século XIX, esses territórios estiveram sempre sob a ameaça das remoções. Remoções que ao longo do tempo desalojaram milhares de pessoas – remoções que continuam a acontecer – de espaços hoje considerados nobres e as realocou em territórios afastados das áreas ricas da cidade.
Esse processo marcado pelo descaso, desatenção e desconfiança, que se intensifica em determinados momentos e arrefece em outros, foi extremamente pernicioso para os favelados. O resultado concreto é que a vida cotidiana das milhares de pessoas que vivem nas favelas acaba por ser marcada por dificuldades de todas as ordens.
Com isso, não é exagero dizer que a favela é a expressão maior das desigualdades socioeconômicas do Rio de Janeiro. De um lado, temos a população dos bairros ricos vivendo em padrão comparado às economias mais ricas do mundo. De outro lado, temos uma população trabalhadora cujo padrão pode ser comparado aos países mais pobres do planeta. Por isso, quando a pandemia que convulsiona o mundo se expande e se aproxima das favelas e de seus moradores, aumenta muito a nossa preocupação. Isso porque são justamente os mais pobres os que mais sofrem por terem menos recursos.
Dentre as principiais medidas recomendadas pela OMS, por exemplo, está o ato simples de lavar as mãos com água e sabão. Porém, em muitos lugares nas favelas cariocas não há água! Em outros casos, quando há água, as pessoas não têm recursos para comprar sabão. Ora como essas pessoas poderão se proteger e proteger suas famílias?
Outra das medidas recomendas para evitar a propagação do Coronavírus é o “isolamento social”. Ou seja, recomenda-se que as pessoas fiquem em suas casas. Contudo, como pedir isso aos moradores das favelas que precisam trabalhar todos os dias para sustentar suas famílias? Muitos desses trabalhadores estão no mercado informal, o que significa que se não trabalharem não receberão nenhum valor. Se as dificuldades já são muitas com o trabalho, como ficarão sem ele?
Assim, os trabalhadores, moradores de favelas, continuam enfrentando as aglomerações nos transportes públicos para chegar a seus postos de trabalho, como sempre aconteceu. Mas, com uma agravante: o medo de contrair a doença e infectar suas famílias.
Contraída a doença, o drama aumenta, pois como as casas, na maioria dos casos, são pequenas e muito próximas, não há como isolar totalmente os doentes. Como casas que possuem apenas um ou dois cômodos de poucos metros quadrados podem oferecer isolamento ou quarentena de forma adequada?
Outra preocupação é quanto ao atendimento médico. As autoridades do país e do Rio de Janeiro têm repetido que se houver um pico de contaminação, não haverá atendimento para todos. Ora, nesse momento, os mais vulneráveis poderão sofrer mais ainda. São os que têm menos recurso, menos informações e menos assistência por parte do Estado.
Certamente, o quadro descrito acima é de gravidade e preocupação. Ele nos apresenta uma situação limite e nos impõe enormes desafios e reflexões: se a cidade e a sociedade do Rio de Janeiro – e do Brasil – não fossem tão desiguais estaríamos com tanto medo?
A desigualdade socioeconômica acumulada e afirmada por anos a fio, e tratada como algo natural por todos, cobrará seu preço se não tomarmos medidas urgente agora e depois da pandemia global.
O interessante, contudo, é que nas próprias favelas cariocas os moradores começam a se mobilizar para se protegerem e ajudarem aqueles que mais precisam e que são mais frágeis. Movimentos de coleta de materiais fundamentais no combate ao Coronavírus, como álcool em gel e sabão, já estão sendo organizados por toda a cidade e, principalmente, nas favelas.
Neste momento tão difícil, é um alento saber que a solidariedade humana ainda se faz viva e presente. É importante também saber que o modelo neoliberal, implementado no país, falhou fragorosamente no momento em que o povo mais precisou. Modelo desumano que retirou a aposentadoria, as garantias trabalhistas e jogou milhões de brasileiros na extrema pobreza.
É certo que não seremos mais os mesmos depois da pandemia do Coronavírus. Modelos econômicos excludentes terão de ser revistos. Ondas de solidariedade, compaixão, amor e respeito esmagaram a prepotência daqueles que controlavam o mundo antes.
A pergunta que fica é: que mundo virá depois?
Edson Diniz é fundador da REDES de Desenvolvimento da Maré, historiador e doutor em sociologia da educação pela PUC-Rio. Desenvolve trabalhos e pesquisas relacionadas à memória e história das favelas, política de segurança pública, direitos humanos e educação.